A fábula da Galinha dos Ovos de Ouro
Assim como na fábula de Esopo, a Galinha que botava ovos de ouro a ganância dos proprietários acaba matando a fonte de riqueza.
O Canal do Panamá é uma via aquática que liga o Oceano Pacífico ao Oceano Atlantico, atravessando o istmo do Panamá. Os dois oceanos foram conectados por um canal de 82 Km escavado entre montanhas ainda na virada século XIX para XX.
A demanda por um canal que ligasse os dois oceanos era antiga. A capacidade de se poupar os navios de um grande e perigoso desvio pelo Estreito de Magalhães remuneraria muito bem quem fosse dono do Canal.
O travessia do Estreito de Magalhães é uma das mais perigosas do mundo. Até porta-aviões nucleares fazem a travessia com muito cuidado.
Na latitude do local, não há nenhuma barreira terrestre para dissipar os ventos, fazendo com que as ondas sejam altas e o vento imprevisível. As pressões barométricas mudam rapidamente, com consequente formação de fortes ventanias e eventuais ciclones. O estreito de Magalhães é protegido por ilhas, assim como o Canal de Beagle, mas a passagem ainda assim é muito perigosa.
HISTÓRIA DO CANAL
Os franceses lideraram a empreita após o sucesso do Canal de Suez, liderados pelo mesmo genial engenheiro Ferdinand de Lesseps, apesar de já ter 74 anos quando nomeado presidente da empreitada. Dinheiro foi levantado no mercado financeiro e os projetos iniciados.
O projeto foi marcada por inúmeras dificuldades, incluindo os problemas de engenharia, os problemas políticos e problemas sanitários.
O problema sanitário foi o mais difícil de solucionar. Localizado em uma floresta tropical a presença de doenças trasmitidas por mosquitos (malária e febre amarela) causava alta mortalidade entre os trabalhadores. O problema sanitário foi tão agudo que forçou a empreitada francesa a vender o projeto para os americanos.
O local natural para escavar o canal era parte da Colombia, em uma federação conhecida como Gran Colombia, posto que o Panamá havia também declarado independência da Espanha com a Colombia.
Rebeliões de nativos contra o domínio colombiano e também a instigação para a separação por parte de operadores americanos, o Panamá se separou da Colombia novamente, se abrigando na proteção dos americanos que recém tinham comprado o projeto do Canal dos franceses. Os americanos tomaram posse do Canal, formando a Zona do Canal, com instalações civis e militares. Dessa forma, os americanos tornaram a Zona do Canal uma possessão americana, com autonomia política.
Os americanos enfrentaram o problema sanitário com a construção de hospitais para tratar os enfermos e combater os mosquitos eliminando acumulação de água onde as larvas pudessem se desenvolver. Basicamente o mesmo esforço realizado hoje contra os mosquitos da dengue.
Foram construidas adutoras de água potável, reduzindo as quantidades de tanques que coletavam água da chuva para consumo humano. Estes tanques proliferavam mosquitos nas áreas urbanas, reduzindo a propagação das doenças.
O problema de engenharia foi solucionado com a instalação de uma ferrovia, que foi iniciada pelos franceses. Esta ferrovia era a forma de se levar equipamentos, materiais e mão de obra para a frente de trabalho dentro da floresta em direção às montanhas.
O projeto de Lesseps não previa o uso de eclusas. A idéia era escavar de um lado a outro do Istmo do Panamá e conectar os dois oceanos.
Os americanos optaram por eclusas que evitaram a escavação na rocha e a formação de uma represa, onde se pode manobrar os navios enquanto esperam para a descida, também economizando obras, navegando no lago.
ECLUSAS E LAGO GATUN
O projeto americano incluia o uso de eclusas, reduzindo a necessidade de se escavar a montanha até o nível do mar e a formação do Lago Gatun represando o rio Chagres.
A genialidade do projeto é a formação do Lago Gatun, que serve como área de espera para as embarcações dentro do canal, fornece um caminho navegável por cerca de 24 kilometros e fundamentalmente fornece a água para as eclusas. A represa também é reservatório de água da hidréletrica.
O lago Gatun armazena a água do rio Chagres e da chuva e a cada vez que as eclusas são acionadas, a água do lago desce por gravidade para preencher o lado da subida da eclusa. Desta forma, a cada fechamento da eclusa, o lago perde água.
Esta característica é importante para a construção do terceiro canal e motivo deste artigo.
INDEPENDENCIA DOS AMERICANOS
A concessão do Canal do Panamá aos americanos foi objeto de um tratado que transferia gradativamente a posse e controle do Canal, que deixaria de ser controlado pelos americanos e passaria ao controle panamenho.
O governo Panamenho asssumiu o Canal e passou a administra-lo diretamente em 1997.
Logo na transferência do controle do Canal surgiram problemas com relação à influencia de agentes extrangeiros na administração do Canal, colocando em risco a ligação entre os dois oceanos. Logo depois da transferência do Canal aos panamenhos, estes venderam dois dos cinco portos aos chineses comunistas.
Desde a criação do Canal, havia a projeção de que em algum momento o tráfego entre os dois oceanos seria tão intenso que haveria demanda para a construção de um novo canal, paralelo ao canal existente, com maior capacidade.
O TERCEIRO CANAL
Com as projeções do aumento de demanda confirmadas, foram iniciadas as obras para aumentar a capacidade do Canal, com mais um conjunto de eclusas, mais largas, para aumetar o tráfego, totalizando três canais independentes.
O projeto inicial do terceiro canal previa que o terceiro canal seguisse pelo mesmo trajeto dos outros dois canais. Para diminuir o consumo de água do lago Gatun, reservatórios de água para as eclusas foram instalados, com o objetivo de preservar 60% da água.
O regime de chuvas na região é controlado pelo fenômeno El Niño, um aquecimento das águas do oceano Pacífico, que reduziu as chuvas por vários anos seguidos. Sem estas chuvas não há água suficiente para reabastercer as eclusas, que agora precisam de muito mais água para operar, porque os navios são muito maiores.
A quantidade de água perdida a cada operação da eclusa, apesar dos reservatórios adicionais, aumenta por que estes reservatórios adicionais foram projetados para transportar a água por gravidade para os reservatórios abaixo e não usam bombas para elevar a água, desta forma a água nunca pode ser totalmente reaproveitada.
A MORTE DA GALINHA DOS OVOS DE OURO
A falta de visão de sustentabilidade dos novos operadores do Canal se demonstra quando uma variação no regime de chuvas compromete o Canal e coloca em risco a cadeia de logística mundial.
A autoridade do Canal já sabe que há falta de água desde 2016. A instalação das novas eclusas já comprometiam a operação, ainda em regime normal de chuvas. Nada foi feito para contornar o problema, o que implicaria que o projeto aprovado era deficiente e obviamente houve desídia. Hoje, oito anos após a conclusão que há falta de água, não se decidiu por nenhuma medida
Problemas de qualidade na construção surgiram na primeira operação do terceiro canal, com vazamentos de água que comprometeu a passagem do primeiro navio. Na contratação da concretagem, o lance vencedor era 70% mais barato que o segundo lance. Há suspeitas que a qualidade do material é inferior ao especificado.
A força dos políticos derivados da estrutura oligarca do Panamá causam dificuldades na tomada de decisões. Os políticos culpam os panamenhos por “usarem água demasiado em consumo doméstico”, ao invés de enfrentarem a dificil decisão de formar um novo lago ou ainda instalar bombas para o reaproveitamento da água das eclusas.
A autoridade do Canal do Panamá tem recorrido a aumento das tarifas de pedágio cobradas pelos navios, fazendo com que os custos de transporte sejam inflacionados. Um navio que necessite cruzar o canal mais rapidamente pode pagar centenas de milhares de dólares pelo privilégio.
E assim, alternativas ao Canal do Panamá se tornam economicamente viáveis, como o canal da Nicarágua ou ainda o multi-modal no México ou Colombia, com o uso de trens para a parte continental. Se qualquer dessas alternativas for consolidada, a galinha dos ovos de ouro do Panamá está condenada.
A ganância e a incompetência andam juntas neste episódio.